Do medo da quarentena


Nos últimos dias cada um de nós recebeu centenas de mensagens contendo sugestões de como ocupar-nos durante os próximos dias de quarentena. Miríades de cursos, filmes, vídeos, livros, músicas e tudo quanto possível para fazer passar melhor o tempo em casa. Mesmo assim, não são poucos os que, tão logo começam a consumir tais entretenimentos, cansam-se, pois o tempo livre é abundante demais, e parece que não existe conteúdo no mundo que possa tornar mais agradável o período de reclusão.

Porque isso acontece? Longe de mim querer fazer uma análise do que ocorre com cada um ou dar uma explicação que seja válida para todos, mas, pensando no assunto, veio-me à mente um trecho de Os Pensamentos de Blaise Pascal:
“Quando me pus a considerar as diversas agitações dos homens e os perigos e as penas a que se expõem na corte, na guerra, de onde nascem tantas querelas, paixões, empresas ousadas e muitas vezes más, eu disse muitas vezes que toda a infelicidade dos homens provém de uma só coisa, que é não saberem ficar em repouso num quarto. Um homem que tem bastante fortuna para viver, se souber ficar em casa com prazer, não sairia para ir à praia (...) e só se procuram a conversação e os divertimentos dos jogos porque não se pode ficar em casa com prazer.”

Profético é pouco para definir o trecho supracitado. É um dado que todos nós percebemos nestes tempos em que temos forçosamente de ficar em casa. Para Pascal, então, a origem dos males humanos está na incapacidade de “ficar em repouso num quarto”, que é outro modo de dizer que a origem dos males é a fuga de si mesmo. A conversação e os divertimentos todos que o ser humano busca são meios para que ele não encontre o seu interior; mas por quê deveria fazê-lo? E qual é o problema do divertimento? Pois, pelo modo como o filósofo explica, parece que seja algo ruim em si mesmo... Outro trecho fornece a chave de leitura para a questão inteira:

“Não tendo os homens podido curar a morte, a miséria e a ignorância, acharam bom, para se tornarem felizes, não pensar nisso; eis tudo o que puderam inventar para se consolarem de tantos males. Mas, é uma consolação bem miserável, de vez que acaba não por curar o mal, mas por ocultá-lo simplesmente por pouco tempo e, ocultando-o, fazer que não se pense em curá-lo de verdade. Assim, por um estranho desequilíbrio da natureza do homem, resulta que o desgosto, que é o seu mal mais sensível, seja até certo ponto o seu maior bem, porque pode contribuir mais que todas as coisas para fazê-lo procurar a sua verdadeira cura; e que o divertimento, que ele encara como o seu maior bem, é na realidade o seu maior mal, porque impede, mais que todas as coisas, que ele procure o remédio para os seus males: e ambos são uma prova admirável, da miséria e da corrupção do homem e, ao mesmo tempo, da sua grandeza, de vez que o homem se aborrece de tudo e só procura essa multidão de ocupações porque tem a idéia da felicidade que perdeu e que, não a achando em si, é por ele procurada inutilmente nas coisas exteriores, sem poder contentar-se nunca, porque ela não está nem em nós nem nas criaturas, mas somente em Deus.”

O fragmento começa explicando que foi para fugir das desgraças que o homem criou os vários divertimentos, como uma forma de consolação. Para Pascal, divertir-se é fugir de algo desconfortável ou assustador; o objetivo da diversão nunca é só divertir-se, mas desviar-se de algo. Esse algo horripilante que sempre vem à tona é o fundo da alma humana, diante da qual o próprio homem treme. Assim, a interioridade do homem é como uma água que precisa ser movimentada para que não vejamos seu fundo. Afinal, porque o silêncio e a solidão são tão apavorantes? Porque põem o sujeito em contato consigo mesmo.

Ocorre que todo o este desgosto interior é experimentado por estarmos chamados a algo maior, isto é, a uma felicidade que não está nem em si, nem nas criaturas, mas em Deus. Assim, quando tentamos remediar a angústia e o tédio com coisas passageiras acabamos por fazer calar a Voz que nos faria perceber essa mesma grandeza e esse chamado. Fugimos do remédio e nos aproximamos do divertimento, que funciona como uma droga entorpecente. 

O desgosto que sentimos é prova de grandeza pois nos assinala que “no princípio, não foi assim”: essa angústia desmedida é fruto do pecado, que separou-nos dAquele que nos dá sentido à vida. É por isso que o filósofo diz que a angústia e o divertimento dão prova da grandeza mas também da corrupção do homem: grandeza que ele tinha, mas que foi perdida com o pecado, e à qual é chamado.

Se você aguentou a leitura até aqui, possivelmente está pensando que essa é uma visão um tanto quanto pessimista da realidade do lazer e do divertimento, afinal, sabemos que há uma justa medida a ser alcançada (pois descanso também é necessário). Mais do que adentrar num assunto que, sem sombra de dúvida, possibilita muita discussão, essa reflexão partindo das ideias de Pascal só visa deixar-nos uma palavra à mente: interioridade.

Você pode aproveitar sua quarentena para assistir uma série, jogar videogame, fazer videochamadas com porções de amigos, mas faça tais coisas de modo consciente e livre, e não por estar fugindo do seu próprio interior, do tédio e da solidão. Mais do que isso, garanta que exitam estes tempos de solidão, de reflexão e de encontro consigo mesmo, pois só quando nos encontramos com o nosso eu é que nos encontramos com Deus. Neste tempo quaresmal somos chamados justamente a estarmos com Ele no deserto, e certamente a Providência quer utilizar essa situação de pandemia para nos dar mais oportunidades de fazê-lo.

Escutemos a voz daquele que ressuscitou a Lázaro chamando-o para fora (Jo 11, 43), mas que para ressuscitar a nós está a usar palavras diversas: “Filho, vem para dentro!”

Sem. Vinícius E. Sander

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